J.M. Coetzee - Desonra

Literatura em língua inglesa
J.M. Coetzee - Desonra - Editora Companhia das Letras - 246 páginas - Publicação 2007 - Tradução de José Rubens Siqueira.

John Maxwell Coetzee é um dos mais conceituados autores contemporâneos em língua inglesa, nascido em 1940 na África do Sul e ganhador do Nobel de literatura de 2003, único escritor a ser premiado por duas vezes com o Booker Prize, primeiramente em 1984 com "Vida e Época de Michael K" e depois em 1999 com "Desonra", ambos os romances retratando a dura realidade social na África do Sul pós-apartheid. Para o público brasileiro é certamente mais fácil do que para os leitores norte-americanos ou europeus entender e contextualizar a vivência com a brutalidade, decorrente da pobreza em uma sociedade massacrada pela exclusão econômica.

O ritmo narrativo de Coetzee em Desonra é rápido e preciso, diria essencial, não encontramos uma palavra a mais ou a menos, cortante e direto ao ponto. O intelectual e irônico David Lurie, professor universitário de poesia de 52 anos e divorciado por duas vezes é um homem inadaptado ao seu meio. Logo no parágrafo de abertura do romance Coetzee apresenta o personagem em sua solidão: "Para um homem de sua idade, cinquenta e dois, divorciado, ele tinha em sua opinião, resolvido muito bem o problema de sexo. Nas tardes de quinta-feira, vai de carro até Green Point. Pontualmente às duas da tarde, toca a campanhia da portaria do edifício Windsor Mansions, diz seu nome e entra. Soraya está esperando na porta do 113. Ele vai direto até o quarto, que cheira bem e tem luz suave, e tira a roupa. Soraya surge do banheiro, despe o roupão, escorrega para a cama ao lado dele. "Sentiu saudade de mim?", ela pergunta. "Sinto saudade o tempo todo", ele responde. Acaricia seu corpo marrom cor-de-mel, sem marcas de sol, deita-a, beija-lhe os seios, fazem amor."

Os problemas de David Lurie começam quando a prostituta Soraya resolve abandoná-lo, destruindo a organização racional com que ele havia equacionado sua vida. Este ponto de inflexão da narrativa fica claro na seguinte passagem: "Sem os interlúdios das quintas-feiras, a semana fica tão sem forma como um deserto. Há dias em que ele não sabe o que fazer consigo mesmo". Ele passa a ter um caso com uma de suas alunas e este relacionamento acaba em um processo de abuso contra Lurie que é isolado e expulso da Universidade, após se recusar a redigir uma declaração atenuante.

Ao se concluir o processo de exoneração, David Lurie, pressionado pela condição de homem que caiu em desgraça na sociedade local, decide se refugiar na fazenda de sua filha no interior. Coetzee tem a oportunidade de confrontar vários aspectos da formação humanista de Lurie com a violência gerada pela pobreza dos excluídos em um país onde, assim como no Brasil, o fato de pertencer a uma classe social mais privilegiada pode ser uma ameaça: "Um risco possuir coisas: um carro, um par de sapatos, um maço de cigarros. Coisas insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros insuficientes. Gente demais, coisas de menos. O que existe tem de estar em circulação, de forma que as pessoas possam ter a chance de ser felizes por um dia."

David Lurie descobre então que suas angústias existenciais e desonra social são insignificantes quando, juntamente com a filha, passa por uma situação limite ao ser atacado na própria fazenda por três negros. Este trecho brilhante de Coetzee ilustra bem a situação de abandono e impotência de Lurie: "Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada lhe valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil, um personagem de cartoon, um missionário de batina e capacete esperando de mãos juntas e olhos virados para o céu enquanto os selvagens combinam lá na língua deles como jogá-lo dentro do caldeirão de água fervendo. O trabalho missionário: que herança deixou esse imenso empreendimento enaltecedor? Nada visível."

Coetzee conseguiu criar uma obra em que os personagens são imprevisíveis e de uma fragilidade intensamente verdadeira. A inadaptação de David Lurie às convenções do meio acadêmico e ao destino implacável, seja pela própria velhice que se aproxima rapidamente ou pelas agressões sofridas por ele e a filha, constituem um estado de desonra permanente do qual ele não consegue escapar.

Comentários

Anny disse…
Rapaz, sua resenha é perfeita. E que angústia!
Parabéns pelo texto.
Ana R. disse…
Vou gostar de ler esse autor...E o título, tão sugestivo...A desonra nossa de cada dia. O tempo que passa, inexorável, a convivência impossível com o outro, as descrenças e desistências diárias....
Abraços!
Unknown disse…
Obrigado pela resenha que, agradavelmente, nos conduz pelas meadas do autor. E à medida que fui lendo, lembrei-me de uma história com argumento parecido de Philip Roth (A marca humana). Você leu? Seria uma comparação apropriada?
O professor dele fez uma trajetória similar, nos EUA, com algumas variações, mencionando a questão de ser negro e judeu. Além do caso com alguém da faculdade.
Recomendo a leitura do Roth, com a mesma gratidão com que li a sua resenha. E, quem sabe, aguardando uma outra, agora de comparação.
Um grande abraço.Saúde.
Anônimo disse…
Já tinha interesse no livro e no autor, agora certamente ele vai entrar no meu rol de 'a ser lido'.
um abraço,
clara lopez
Alexandre Kovacs disse…
Anny, obrigado pelo elogio, fico contente que você tenha gostado. Se consegui passar a idéia de angústia acho que fui bem sucedido, pois é uma das sensações que este romance provoca.
Alexandre Kovacs disse…
Ana, com a sua postura e responsabilidade política você sabe bem o estado de desonra que nós brasileiros somos obrigados a enfrentar diariamente.
Alexandre Kovacs disse…
Djabal, obrigado mais uma vez pelos seus comentários que sempre agregam conteúdo aos assuntos e com muita propriedade, diga-se de passagem.

Já li em alguns textos críticos comparações entre Coetzee e Philip Roth, mas sobre "A marca humana" ainda não posso comentar. Este livro vai para a minha lista de próximas breves leituras e certamente uma resenha por aqui.
Alexandre Kovacs disse…
Clara, tenho certeza de que você vai gostar muito, apesar da angústia que o livro provoca. De qualquer forma, este é justamente um dos objetivos da verdadeira literatura, não é?
Barros (RBA) disse…
Não li o livro, mas assim que li sua resenha, me veio à mente uma mistura de "A marca humana" com "Homem Comum" de Philip Roth, que é um dos melhores escritores americanos, ainda vivo e produtivo.
Parece que ambos trilham no mesmo campo social e psicológico.
Coetzee está na minha lista, mas antes tenho que terminar algumas obras um tanto grandes e complexas (em breve, novidades em meu Blog).
Alexandre Kovacs disse…
Barros, com relação a Philip Roth ver a resposta acima ao comentário do Djabal, acho que ambos tiveram a mesma impressão. Tantos livros e tão pouco tempo... Estou aguardando com interesse as novidades do http://barrosbar.blogspot.com/
Maria Augusta disse…
Tua resenha está tão perfeita, que tenho a impressão de ter lido o livro...
Este autor me parece muito bom, não o conhecia, vou procurar conhecê-lo melhor.
Um abraço.
Alexandre Kovacs disse…
Maria Augusta, bom que você gostou. Normalmente é muito difícil dosar a quantidade ideal de informação que deve ser passada em uma resenha, pois se detalhamos demais o leitor perde o prazer da descoberta. Por outro lado, se ficarmos apenas na superfície, corremos o risco de divulgar e não comentar verdadeiramente.
Olá, Kovacs. Também li Desonra, meu primeiro e, até agora único, Coetzee. Gostei muito, e sua resenha foi excelente.
Alexandre Kovacs disse…
Sonia, também preciso ler mais Coetzee. Obrigado pela visita e comentário.
Pedrita disse…
imperdoável, mas nunca li nada dele. está na lista há anos. beijos, pedrita
Alexandre Kovacs disse…
Pedrita, todos nós sofremos com as listas infindáveis dos livros que devemos ler e reler. Obrigado pela visita e comentário.
Anônimo disse…
Reli, Desonra.
Este escritor é para mim um dos melhores da atualidade; sua escrita direta transpõe a África do Sul. Outro livro magnifíco ''A vida e epóca de Michael K'' é também uma obra singular, tão condizente com a nossa realidade (brasileira). Li recentemente dois artigos no site leitor compulsivo que diz tudo sobre Desonra: ''É de se pensar que o drama de David Lurie, nas mãos de outro escritor, se tornaria um pesado calhamaço de reflexões edificantes e críticas à perene condição humana, sobre a ética em tempos pós-modernosos, sobre a diluição da moral, e outras estorinhas de ninar adultos céticos; felizmente, não há elogio maior a se fazer do que afirmar que um livro é tão bom que só seu autor poderia escrevê-lo, e esses são os termos exatos para ‘Desonra’ e sua triste filosofia: a razão, em momentos de crise, nunca basta, e só confunde e martiriza – diante da fatalidade, somos exatamente como cães.(Vinicius)'' Brilhante, não?

Disgrace,
a tradução ficou DESONRA. A extrema decadência humana, a progressiva incapacidade de expiar os erros, a progressiva adaptação à velhice, à deterioração; a desonra como a perda do direito de ter uma injustiça contra si reparada. Um clássico sobre a busca incessante de bodes expiatórios para o sacrifício.MEMORÁVEL!!!
Alexandre Kovacs disse…
Lumdila, também achei o contexto de exclusão social muito similar ao de nosso país. Com relação à citação sobre "bodes expiatórios para o sacrifício", entendo que você destacou muito bem, pois é realmente um tema central do livro. Muito obrigado pela participação e volte sempre!
Anônimo disse…
Kovacs, acabo de encontrar por acaso teu blog e justamente procurando algum comentario sobre o livro do Coetzee, Disgrace. Teu blog eh otimo e tem de tudo um pouco do que aprecio. Se vc me permitir gostaria de acrescenta-lo ao meu
http://ilusaodasemelhanca.blogspot.com/
um grande abraco, Chico.
Alexandre Kovacs disse…
Chico, obrigado pela visita e comentário, também gostei muito dos temas e textos do seu blog que já está devidamente linkado no meu mundo. Volte sempre.
Cecília disse…
Minha primeira experiência com Cotzie foi justamente com 'Desonra' e você foi preciso na resenha. Deu até vontade de ler de novo... Ele está entre meus favoritos, não só o livro como o autor. Quero ler todos os outros dele! Obrigada pela oportunidade de conhecer, apreender cultura de forma tão agradável, leve e profunda.
Sorte e saúde!
Cecília
Alexandre Kovacs disse…
Una donna, muito obrigado pelo comentário gentil e generoso, pelo visto somos ambos fãs de Coetzee!

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