Ernesto Sabato - Sobre Heróis e Tumbas

Ernesto Sabato - Sobre Heróis e Tumbas - Editora Companhia das Letras - 623 páginas - Publicação 2002 - Tradução de Rosa Freire d'Aguiar.

Certos livros são inesquecíveis, ou melhor, nunca nos abandonam. É o caso deste "Sobre Heróis e Tumbas" do argentino Ernesto Sabato, prêmio Miguel de Cervantes de Literatura de 1984 e um dos maiores romancistas do século XX. O romance se divide em três narrativas, a paixão doentia do jovem Martín por Alejandra, a desonrosa fuga do general Juan Lavalle, herói da independência argentina, para o exílio, com os sobreviventes de seu exército e a investigação fantástica sobre a Seita dos Cegos. 

O próprio Sabato define melhor do que ninguém o seu trabalho nesta frase: "A diferença entre um romancista e um louco é que o primeiro pode ir até a loucura e voltar". Entre tantas passagens dignas de nota, o trecho abaixo, doloroso e angustiante, devo alertar, mostra bem porque não se consegue escapar sem marcas desta leitura:


"Mas nem sempre os homens sentados e pensativos são velhos ou aposentados.

Às vezes são homens relativamente moços, indivíduos de trinta ou quarenta anos. E, coisa curiosa e digna de reflexão (pensava Bruno), parecem tão mais patéticos e desvalidos quanto mais jovens são. Pois o que pode haver de mais pavoroso do que um rapaz sentado e pensativo num banco de praça, angustiado por seus pensamentos, calado e alheio ao mundo a seu redor? Às vezes, o homem ou rapaz é um marinheiro; outras vezes, talvez seja um emigrante que gostaria de regressar à pátria e não pode; volta e meia são criaturas incapazes para a vida, ou que deixaram a casa para sempre ou meditam sobre sua solidão e seu futuro. Ou pode ser um rapazinho como o próprio Martín, que começa a ver com horror que o absoluto não existe.

Ou também pode ser um homem que perdeu o filho e que, de volta do cemitério, se encontra sozinho e sente que agora sua existência carece de sentido, refletindo que, enquanto isso, há homens por aí que riem ou são felizes (mesmo sendo apenas momentaneamente felizes), meninos que brincam no parque, ali (está vendo-os), enquanto seu próprio filho está debaixo da terra, num caixão pequeno adequado ao tamanhinho de seu corpo que, quem sabe, finalmente deixará de lutar contra um inimigo atroz e desproporcional. E esse homem sentado e pensativo medita de novo, ou pela primeira vez, sobre o sentido geral do mundo, pois não consegue entender por que seu filho precisou morrer assim, por que teve de pagar por um pecado de outros, com sofrimentos imensos, com seu coraçãozinho torturado pela asfixia ou paralisia, lutando desesperadamente, sem saber por quê, contra as sombras negras que começam a se abater sobre ele.

E este, sim, é um homem desamparado. E, coisa curiosa, pode não ser pobre, é até possível que seja rico, e até poderia ser o Grande Banqueiro que planejava a formidável Operação com divisas fortes, evocada antes com ironia e desdém. Desdém e ironia (agora era fácil entender) que, como sempre, eram excessivos e definitivamente injustos. Não há homem que, em última instância, mereça o desdém e a ironia, já que, cedo ou tarde, com divisas fortes ou não, ele é atingido pelas desgraças, pelas mortes dos filhos, ou irmãos, por sua própria velhice e solidão diante da morte. Terminando, enfim, mais inválido que ninguém, pela mesma razão que é mais indefeso o homem de guerra flagrado sem sua cota de malhas do que o insignificante homem de paz que, por nunca ter tido esta proteção, tampouco sente sua falta."

Comentários

Maria Augusta disse…
Um homem jovem sentado em um banco de jardim meditando...pensando bem é estranho mesmo. E já percebeu que já quase não existem mais bancos de jardim?
Trecho muito forte este, conheço este autor de nome mas nunca li nada dele, vou procurar fazê-lo.
Obrigada pela dica.
Abraços.
Anônimo disse…
Esse é realmente um livro volumoso, eu quase não dou conta do meu último, tb grandinho...:) o livro é sempre nesse tom?
um abraço,
clara lopez
Alexandre Kovacs disse…
Maria Augusta, já não existem bancos de jardim nem muitos autores como Saramago, recomendo fortemente. Obrigado pela visita e comentário.
Alexandre Kovacs disse…
Clara Lopez, "Sobre Heróis e Tumbas" é uma obra angustiante, um abandonar-se à loucura dos personagens. Um trabalho lindo na mais completa definição de literatura, como ela sempre deveria ser. Hoje temos mais personalidades do que autores (ver a FLIP 2008, por exemplo). Obrigado pela visita.
Sobre heróis e tumbas foi o primiero livro que li de Sabato. Como diz a resenha, inesquecível. Li depois O Túnel, muito bom também, mas Sobre heróis... me marcou muito mais.
Alexandre Kovacs disse…
Sonia, este livro, apesar de angustiante, fica marcado em nosso inconsciente para sempre. É uma característica da boa literatura.
Barros (RBA) disse…
Kovacs,
Sua produção aqui no Blog tem sido prodigiosa.
Os trechos escolhidos tiveram tão grande impacto em mim que o livro já entrou na lista de minhas prioridades de leitura.
Alexandre Kovacs disse…
Barros, fico satisfeito que tenha gostado, Ernesto Sabato é uma prioridade sem dúvida nenhuma. Obrigado pela visita e comentário.
myra disse…
Sabato!!!!! que bom que esta aqui!!! abraços e um beijao,
Alexandre Kovacs disse…
Myra, Sabato é um autor fundamental!
Patrícia disse…
Cheguei aqui por conta da busca de pessoas que tivessem sentido o mesmo que senti quando li o livro. Agradeço por tê-lo lido. É mais do que o livro da minha vida, muito mais. É a razão porque a literatura, para mim, seja, ao lado da música, o nome da perfeição na arte.
Alexandre Kovacs disse…
Caro Walrus, primeiramente seja muito bem-vindo por aqui. Este livro é muito mais do que um simples romance ele trabalha diretamente com uma área do nosso cérebro desconhecida até para nós mesmos. Outro autor argentino mportante é Julio Cortázar, além do óbvio Borges. Grande abraço e espero revê-lo no Mundo de K outras vezes.
Gerana Damulakis disse…
É, vai passar na frente de outros, tenho que ler.
Lady Cronopio disse…
Caríssimo! Estou relendo o meu volume graças a esta sua resenha que não tinha visto ainda!
Uma viagem dentro da loucura da imaginação e daquela que se diz, enfermidade ...
Alexandre Kovacs disse…
Oi Lady, obrigado pela visita e comentário. Um grande clássico sem dúvida para muitas releituras. Grande abraço!

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