Matilde Campilho - Jóquei

Poesia
Matilde Campilho - Jóquei - Editora 34 - Coleção Poesia - 152 páginas - Lançamento 2015.

Matilde Campilho nasceu em Lisboa em 1982 e viveu no Rio de Janeiro entre 2010 e 2013 onde escreveu este seu primeiro livro de poemas que comprova a importância da preservação e utilização das culturas locais na literatura (prosa e poesia). O terrível Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e, em caráter mais geral, o uso indiscriminado da Internet, ajudaram a transformar o nosso mundo em uma Aldeia Global, como chamado pelo filósofo canadense Marshall McLuhan, um mundo tristemente padronizado, igual em todos os lugares e muito sem graça, principalmente para os poetas. 

Não tenho conhecimento de outros escritores que souberam integrar de forma tão criativa, em uma mesma obra, as diferenças linguísticas entre o português falado no Brasil e em Portugal, sem mencionar os países africanos e as particularidades regionais desses países lusófonos. Por outro lado, a poesia de Matilde também está repleta de referências globalizadas (inclusive em inglês) e nunca sabemos em que lugar do mundo o próximo poema irá nos levar, seja ele real ou imaginário: New Jersey, Maracanã, arrozal de Vang Vieng, Tavizkam, Itaparica ou Sevilha, sempre existe uma nova poesia para ser descoberta.

Na verdade, "poeta nômade" é uma excelente definição para a jovem autora lisboeta que estudou em Milão, trabalhou em Madri e Moçambique, veio ao Rio de Janeiro para ficar apenas quinze dias e acabou ficando três anos, trabalhando como jornalista e redatora. Em 2015, com o sucesso do livro que foi lançado primeiramente em Portugal, ela retornou ao Rio para participar da FLIP em Paraty e comentou, com sotaque carioca, sobre a desconstrução dos modelos tradicionais de fazer poesia e da cadência musical dos seus poemas, encantando o público presente que a apelidou de musa daquela edição do evento (ler aqui reportagem e entrevista). 

Assim, os poemas de Matilde, muitos deles verdadeiros textos em prosa, ganham uma dinâmica e colorido que justificam a palavra "Jóquei" como título do livro. A sua obra reflete "o ritmo de caminhada na avenida, de conversa travada na rua, de repetições, saltos bruscos e retomadas", tudo isso graças "a uma fome de mundo rara, a uma curiosidade que é marca dos vorazes" como bem definiu Carlito Azevedo (que sabe tudo) na apresentação desta edição brasileira da Editora 34. Peço licença à autora para apresentar aqui o poema que definitivamente me conquistou, a carta-poema que eu sempre quis escrever para o meu próprio filho e nunca consegui. Leiam devagar este belo exemplo de poesia.

A Primeira Hora Em que o Filho do Sol Brincou com Chumbinhos
(Matilde Campilho)

para o Francisco, aos nove anos

Não é que eu queira que você saiba manejar armas
mas quero sim que se prepare para afinar sua pontaria.

Meu querido, as árvores falam. Os tigres correm olimpíadas em pistas muito mais incríveis do que aquelas feitas de cimento laranja. Usain Bolt vezes cem, o sorriso de Usain Bolt vezes mil. A matemática não é difícil se você comparar tudo ao aparecimento de um cardume. Alguns frutos nascem no chão, outros caem dos ramos. É preciso estar atento. Certas canções despertam em nós a vontade de uma história que já aconteceu mas que não vai acontecer mais. Algumas histórias têm a duração exata de uma música rock, outras se dividem em cantos. No intervalo dá para comprar pipocas. Poucas pessoas contaram as riscas de uma zebra, mas todos os que o fizeram regressaram diferentes. O alvo de um humano está no terceiro olho e um dia alguém vai explicar para você como o afagar e onde ele fica. Nunca aponte ao terceiro olho, com aquilo é só cuidados. Algumas vezes vão te empurrar e você vai empurrar de volta, provavelmente vai até querer pegar uma pedra para jogar no peito de quem te feriu. Isso não está certo, mas é humano. Quase tudo o que é humano é justo, não deixe que ninguém te diga o contrário — só não vale enfiar o dedo no tal olho porque isso é igual a matar. A morte é o contrário de justiça. Os peixes respiram debaixo de água e se você mergulhar entre as rochas e se concentrar muito também vai conseguir. Ah é: os peixes brilham mais que as chamas, e alguns deles vão morar dentro de seus pulmões. Segure-se. Faça por polir seu riso, principalmente ao entardecer. Afine diariamente a pontaria e reze para que nunca seja necessário o disparo. Não existe proteção melhor do que a consciência de que podemos decidir atirar ao lado. Sim, daqui a muitos anos você vai conseguir acertar direitinho nessa lata de coca-cola que a gente suspendeu no sobreiro. Só acho que não vai querer. Também vai saber por que razão é melhor segurar uma arma descalço — é que é na terra que está a consciência do mundo, e é preciso escutar o seu ruído para agir em verdade. Saiba também, querido, que muitas vezes a sombra de um desenho é bem mais bonita do que o desenho que está à vista. É preciso estar atento, e descobrir o bichinho que se mexe debaixo da folhagem. Não o mate: se cubra de flores e entre para brincar com ele.

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