Solidão que nada

Edward Hopper - Room in New York
Edward Hopper - Room in New York

Em "O outro pé da sereia", Mia Couto nos ensina com a sua prosa sempre original que "o problema da solidão é que não temos ninguém a quem mentir", citação que pode nos levar ao entendimento de que a solidão é um sentimento de angústia decorrente do terrível esforço de enfrentar a nós mesmos. Na verdade, o próprio exercício da literatura, tanto do ponto de vista do escritor quanto do leitor, é essencialmente uma experiência solitária e de autoconhecimento, para o bem e para o mal. Outro autor famoso por suas indagações metafísicas, Paul Auster, partilha da mesma ideia sobre o fazer literário, mas ressalvando que a literatura, em última análise, aproxima as pessoas: "escreve-se em solidão, lê-se em solidão e, apesar de tudo, o ato de leitura permite uma comunicação entre dois seres humanos."

Na filosofia existem formas distintas de pensar o mesmo conceito, Heidegger entendia a solidão como um estado natural do homem que nasce só e morre só, devendo portanto se adaptar a essa condição. Sartre, em uma de suas frases mais famosas, chegava a afirmar que "o inferno são os outros", em um contexto que priorizava a existência sobre a essência humana, ou seja, a liberdade das nossas escolhas e experiências é que deveria nortear a nossa formação, mas os limites da convivência em sociedade (os outros) impediriam este crescimento ao expor nossas fraquezas. Nietzsche detestava aqueles que "roubavam" a sua solidão sem oferecer em troca uma verdadeira companhia. Outras correntes mais tradicionais defendiam o convívio em sociedade para superar a fragilidade e dependência do homem, assim, segundo Aristóteles "Quem encontra prazer na solidão, ou é fera selvagem ou é Deus."

O artista que melhor representou a solidão na história da pintura foi o americano Edward Hopper. Seus temas são normalmente paisagens urbanas desertas e sempre com uma iluminação peculiar, induzindo uma sensação de silenciosa introspecção. Na imagem que abre esta postagem, uma tela de 1932, flagramos um casal na intimidade de sua solidão (existirá solidão mais triste do que a solidão a dois?). O homem absorto na leitura de seu jornal, a mulher tocando displicentemente o teclado do piano com o dedo indicador. O afastamento é caracterizado pela postura tediosa da mulher e também pelo cenário, já que uma mesa redonda parece se transformar em um obstáculo intransponível, pelo menos é o que sentimos. Talvez, hoje, esta mesma cena seria melhor representada pelo manuseio de dois smartphones.

Sabemos que existe um comportamento individualista na sociedade moderna, não só pelo aumento dos casos de divórcio ou pela maior expectativa de vida, mas também pela opção de isolamento social (apesar de tanto tempo consumido em redes sociais). Por diferentes motivações, o fato é que esta tendência atual à solidão, voluntária ou não, tem se revelado como mais um caso de saúde pública, principalmente quando associada aos sintomas de depressão e demais transtornos de ordem psíquica, não somente em idosos, mas em todas as faixas etárias, inclusive crianças. Será que estamos diante de mais uma nova patologia provocada pelo stress da vida urbana que demanda tratamento médico especializado, a exemplo de doenças como a obesidade e o vício, ou existem formas naturais de lidar com o problema?

Nem sempre a solidão precisa estar associada a um estado de melancolia ou depressão, pode ser também uma oportunidade única de desenvolver projetos pessoais, exercer a autocrítica, provocar o amadurecimento, aumentar a autoestima e, até mesmo, ganhar qualidade nos relacionamentos afetivos. Talvez, a angústia existencial que sentimos hoje seja mais motivada pelo "espírito de manada" que nos induz ao excesso de exposição no mundo virtual e a impossibilidade de ficarmos longe dos "acontecimentos", do que pelo fato de estarmos realmente sós (e não estamos cada vez mais solitários de qualquer forma?). A passagem de um ano difícil pode ser uma oportunidade rara de reflexão que nos leve a um ato de coragem e verdadeira liberdade, um encontro que já foi muito adiado com nós mesmos. 

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