Julián Fuks - A Resistência

Literatura brasileira
Julián Fuks - A Resistência - Editora Companhia das Letras - 144 páginas - Lançamento: 05/10/2015 (Leia aqui um trecho em pdf disponibilizado pela Editora).

Este livro alterna entre a autobiografia e ficção, utilizando "palavras guardadas na obscuridade da memória, palavras já esquecidas e transformadas em vagas noções, turvas imagens, impressões duvidosas", assim define em certa passagem o angustiado protagonista Sebastián, representação do autor Julián Fuks, na tentativa de resgatar a sofrida história da própria família, a começar pela resistência política dos pais argentinos, exilados no Brasil, fugitivos da ditadura militar em seu país de origem. Outra resistência que permeia toda a narrativa é a do irmão mais velho, que foi adotado ainda na Argentina, neste caso uma resistência ao convívio familiar. Contar os dramas particulares da própria família não deve ter sido uma tarefa fácil, ainda mais porque o autor partiu apenas das já citadas "vagas noções" dos fatos e com elas precisou "construir o edifício desta história, sobre alicerces subterrâneos tremendamente instáveis".

A prosa de Julián Fuks é precisa e essencial, percebe-se o rigor cirúrgico do autor que deve ter norteado o desenvolvimento de todo o texto, mas nunca deixando de lado a emoção. E como não se emocionar com a descrição dos desaparecidos políticos durante o regime militar argentino, é claro que escrever pode ser um grande ato de resistência, principalmente ao descrever o sentimento de perda que sua mãe sofreu depois da prisão de uma amiga: "Minha mãe não deixou de perguntar, mas o silêncio foi se tornando mais frequente que as palavras e aos poucos aquela ausência ocupou o espaço que a amiga ocupara, roubando-lhe o nome, deformando na memória seus traços. (...) a atrocidade de um regime que mata e que, além de matar, aniquila os que cercam suas vítimas ignoradas, lutos obstruídos, histórias não contadas — a atrocidade de um regime que mata também a morte dos assassinados." Muito dolorosa, mas também linda essa passagem, não é mesmo?

A tentativa de reconstituir a origem do irmão adotado e com isso gerar algum tipo de aproximação, de certa forma impossível, é outra meta da ficção de Julián Fuks. Há um pedaço de papel já amarelado guardado em uma gaveta. Segundo a mãe, neste eterno lembrete constam o nome e o telefone da parteira que propiciou a adoção clandestina na época, mas ninguém nunca se atreveu a discar este número, sabendo que se trataria de um erro óbvio, provavelmente um destinatário inexistente. Enfim, escrever um livro mais sincero, mais sensível, é o que cogita o protagonista como se escrevesse uma carta para o irmão, cujo nome nunca é pronunciado. Na verdade, a grande motivação é este irmão, um irmão possível que originou esta narrativa: "Sobre isso você devia escrever um dia, sobre ser adotado, alguém precisa escrever".

Certamente o mais importante lançamento da literatura nacional em 2016, este romance tão pessoal conduziu Julián Fuks à condição de um dos autores mais premiados do ano, conquistando o Jabuti de melhor livro de ficção e ainda sendo finalista dos prêmios Oceanos e São Paulo. Uma obra madura de um autor que, assim como o seu protagonista, herdou a condição de exilado, mas nem por isso tem medo de se expor e escrever com sensibilidade, uma condição necessária para que ocorra a verdadeira literatura.

          "Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado. Se digo assim, se pronuncio essa frase que por muito tempo cuidei de silenciar, reduzo me irmão a uma condição categórica, a uma atribuição essencial: meu irmão é algo, e esse algo é o que tantos tentam enxergar nele, esse algo são as marcas que insistimos em procurar, contra a vontade, em seus traços, em seus gestos, em seus atos. Meu irmão é adotado, mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero aprofundar sua cicatriz e, se não quero, não posso dizer cicatriz.
          Poderia empregar o verbo no passado e dizer que meu irmão foi adotado, livrando-o assim do presente eterno, da perpetuidade, mas não consigo superar a estranheza que a formulação provoca. Meu irmão não era algo distinto até que foi adotado; meu irmão se tornou meu irmão no instante em que foi adotado, ou melhor, no instante em que eu nasci, alguns anos mais tarde. Se digo que meu irmão foi adotado, é como se denunciasse sem desespero que o perdi, que o sequestraram, que eu tinha um irmão até que alguém veio e o levou para longe.
           A opção que resta é a mais pronunciável; entre as possíveis, é a que causa menos inquietação, ou a que melhor a esconde. Meu irmão é filho adotivo. Há uma tecnicidade no termo, filho adotivo, que contribui para sua aceitação social. Há uma novidade que por um átimo o absolve das mazelas do passado, que parece limpá-lo de seus sentidos indesejáveis. Digo que meu irmão é filho adotivo e as pessoas tendem a assentir com solenidade, disfarçando qualquer pesar, baixando os olhos como se não sentissem nenhuma ânsia de perguntar mais nada. Talvez compartilhem da minha inquietude, talvez de fato se esqueçam do assunto no próximo gole ou na próxima garfada. Se a inquietude continua a reverberar em mim, é porque ouço a frase também de maneira parcial — meu irmão é filho — e é difícil aceitar que ela não termine com a verdade tautológica habitual: meu irmão é filho dos meus pais. Estou entoando que meu irmão é filho e uma interrogação sempre me salta aos lábios: filho de quem?"

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