Carlos Ruiz Zafón - A Sombra do Vento

Série O Cemitério dos Livros Esquecidos
Carlos Ruiz Zafón - A Sombra do Vento - 400 Páginas - Grupo Companhia das Letras - Selo Suma de Letras - Tradução de Marcia Ribas (Relançamento no Brasil: 26/05/2017).

Por mais absurdo que possa parecer, sabemos que o sucesso de vendas nem sempre reflete a qualidade literária de um lançamento. Na verdade, na maioria das vezes, ocorre justamente o contrário, ou seja, quanto melhor o desempenho como best seller tanto pior a avaliação crítica da obra e nem há necessidade de citarmos exemplos de tão recorrente se tornou este fenômeno no mercado editorial, não só no Brasil, diga-se de passagem. Logo, é natural que um romance como "A Sombra do Vento", que já ultrapassou a invejável soma de 6,5 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, desperte o nosso ceticismo e desconfiança.

Felizmente, Carlos Ruiz Zafón nos prova que é possível obter sucesso de público sem negociar a originalidade ou fazer concessões de mercado. "A Sombra do Vento" faz parte daquela tradição de romances de aventuras do século XIX que formaram gerações de leitores de todas as idades, sabendo dosar entretenimento e bom gosto, livros que nos fizeram rir e chorar sem a necessidade de maiores refinamentos ou técnicas narrativas, tão somente contar uma boa história por meio de personagens cativantes, como se isso fosse uma tarefa fácil. Se acrescentarmos a este espírito aventureiro um toque de estilo policial noir do século XX, com um argumento cheio de mistérios, assim como referências históricas e culturais de uma linda cidade como Barcelona, teremos uma ideia melhor do ambicioso projeto literário proposto pelo autor.

A maior parte dos eventos narrados no romance ocorre imediatamente antes, durante e depois da sangrenta guerra civil espanhola (1936-1939). O protagonista, Daniel Sempere, com onze anos incompletos em 1945, sente muito a falta da mãe que morreu em decorrência das condições de pobreza extrema da população em Barcelona ao final dos conflitos, quando ele tinha apenas quatro anos. Daniel vive com o pai, um livreiro especializado em edições raras que, com a finalidade de aliviar o sofrimento do menino, resolve levá-lo para conhecer um lugar mágico e misterioso, o Cemitério dos Livros Esquecidos, uma biblioteca labiríntica e secreta onde volumes abandonados aguardam o seu resgate por novos leitores. Por sinal, a literatura é sempre um elemento presente neste romance, praticamente um dos personagens, seja nas referências secundárias do texto ou mesmo como argumento, já que "A Sombra do Vento", um livro que Daniel encontra nesta biblioteca será o elemento central de toda a trama.
"Logo depois da guerra civil um surto de cólera levou minha mãe. Nós a enterramos em Montjuic, no dia do meu quarto aniversário. Lembro apenas que choveu o dia todo e a noite toda, e que quando perguntei ao meu pai se o céu chorava faltou-lhe voz para responder. Seis anos depois, a lembrança da minha mãe era para mim como uma alucinação, um silêncio cheio de gritos que eu não tinha aprendido ainda a apaziguar com palavras. Meu pai e eu morávamos num pequeno apartamento da rua Santa Ana, perto da praça da igreja. O apartamento ficava bem em cima da livraria especializada em edições para colecionadores e livros antigos herdada de meu avô, uma loja encantada que meu pai confiava que algum dia passasse às minhas mãos. Cresci no meio de livros, fazendo amigos invisíveis em páginas que se desfaziam em pó e cujo cheiro ainda conservo nas mãos. Aprendi desde pequeno a conciliar o sono conversando com minha mãe na penumbra do quarto sobre os acontecimentos do dia, o que fizera no colégio, o que tinha aprendido naquele dia. Não podia ouvir a sua voz ou sentir o seu tato, mas a sua luz e o seu calor inflamavam cada canto daquela casa e eu, com aquela fé dos que ainda podem contar os anos nos dedos das mãos, achava que, se fechasse os olhos e falasse com ela, ela poderia me escutar onde quer que estivesse. Às vezes meu pai escutava da sala de jantar e chorava baixinho." (Pág. 7)
"A Sombra do Vento" tem um efeito muito forte na imaginação do pequeno Daniel que, deste momento em diante, passa a viver uma obsessão durante toda a infância e adolescência para saber mais detalhes sobre a biografia do autor, Julián Carax, e o restante de sua obra. Na verdade, este escritor só é conhecido no circuito de colecionadores de livros raros devido a uma estranha peculiaridade, os seus romances, que nunca venderam bem, vêm sendo queimados em toda a Europa e aquele volume é possivelmente o último exemplar restante. A busca por mais informações faz com que o tímido e sensível Daniel enfrente vários perigos que ameaçam a sua vida e do seu parceiro de aventuras, o divertido Fermín Romero de Torres, descobrindo durante a sua trajetória os dissabores da paixão não correspondida e também as delícias do verdadeiro amor, sempre em um clima alucinante de sucessivos mistérios e revelações. O trecho abaixo, por exemplo, descreve uma decadente instituição de caridade pública onde tentam encontrar uma antiga testemunha do passado de Julián Carax.
"No caminho, com sua costumeira verve para o folclore novelesco, Fermín me informou sobre os antecedentes do local ao qual nos dirigíamos. O asilo de Santa Lucia era uma instituição de reputação espectral situada nas entranhas de um antigo palácio em ruínas na rua Moncada. A lenda em torno dele desenhava um perfil a meio caminho entre um purgatório e um necrotério, com péssimas condições sanitárias. Sua história era, no mínimo, peculiar. Desde o século XI ele havia abrigado, entre outras coisas, várias residências de famílias importantes, uma prisão, um salão de cortesãs, uma biblioteca de livros proibidos, um quartel, um ateliê de escultura, um sanatório de pestilentos e um convento. em meados do século XIX, praticamente ruindo, o palácio foi transformado num museu de deformidades e atrocidades circenses por um extravagante empresário que se fazia chamar Laszlo de Vicherny, duque de Parma e alquimista particular da casa de Bourbon, mas cujo verdadeiro nome era Baltasar Deulofeu i Carallot, natural de Esparraguera, gigolô e charlatão profissional." (Pág. 177)
Entendo que a resenha de um livro assim, deva adiantar o mínimo possível para não comprometer o prazer da surpresa. Um romance que oscila entre o realismo e o sonho, prendendo o interesse do leitor do início até o final. Recomendo sem receio, principalmente se a intenção for o entretenimento sem maiores expectativas do que o puro prazer da leitura e a chance de esquecer por alguns momentos os problemas e a dura realidade do cotidiano. Além do divertimento, o leitor mais experiente certamente encontrará uma ótima oportunidade de relembrar livros e personagens do seu passado e os mais jovens (que inveja) inspiração para novas descobertas.

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