Orhan Pamuk - Uma Sensação Estranha

Prêmio Nobel de Literatura 2006
Orhan Pamuk - Uma Sensação Estranha - Editora Companhia das Letras - 592 Páginas - Tradução  indireta de Luciano Vieira Machado com base nas edições inglesa e espanhola - Ler aqui um trecho disponibilizado pela Editora (Lançamento no Brasil: 30/03/2017).

Novamente Istambul é a grande personagem do romancista Orhan Pamuk, prêmio Nobel de Literatura 2006. Localizada entre a Europa e a Ásia e conhecida no passado como Bizâncio e Constantinopla, durante séculos assimilou diferentes culturas, tendo feito parte dos impérios Romano, Bizantino e Otomano até ser incorporada à República da Turquia em 1923, como parte das reformas políticas de Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), quando perdeu o status de capital para Ancara. Istambul é recriada pelos olhos de Orhan Pamuk em alguns romances anteriores como O Livro Negro, O Museu da Inocência e, principalmente, na sua autobiografia Istambul onde a história de sua vida se confunde com a da cidade e é destacada a melancolia do eterno conflito entre modernização e tradição. 

Neste romance, lançado originalmente em 2014, o ponto de vista do autor é o da população mais pobre, forçada a emigrar das distantes aldeias no interior da Turquia em busca de melhores condições de vida, representada por Mevlut Karataş, vendedor ambulante, sua família e amigos, no período entre 1969 e 2012. A escolha de um vendedor ambulante, que circula por todos os bairros da cidade com potes de iogurte, arroz, ervilha e boza, típica bebida turca, feita de trigo fermentado e baixo teor alcoólico, foi uma decisão acertada porque o protagonista mantém contato com pessoas de todos os tipos de credos políticos e religiosos, permitindo ao autor mostrar o cotidiano de diferentes classes sociais, minorias étnicas e o impacto do desenvolvimento na urbanização forçada, assim como os eventos históricos locais e mundiais, ao longo dos últimos cinquenta anos, em cada região de Istambul. 
Esta é a história da vida e dos sonhos de Mevlut Karataş, vendedor de boza e de iogurte. Nascido em 1957 na fronteira ocidental da Ásia, numa aldeia pobre que dava para um lago enevoado da Anatólia Central, aos doze anos foi para Istambul, a capital do mundo, onde passou o resto da vida. Quando tinha vinte e cinco anos, voltou para a província natal e de lá fugiu com uma jovem, num estranho episódio que determinou o curso de seus dias. Voltou para Istambul, casou-se, teve duas filhas e se pôs a trabalhar sem descanso — vendeu iogurte, sorvete e arroz como ambulante, e exerceu o ofício de garçom. Mas à noite nunca deixou de perambular pelas ruas de Istambul, vendendo boza e sonhando sonhos estranhos. (Pág. 19)
Outra estratégia acertada de Orhan Pamuk, para integrar o leitor ao universo de seus personagens, foi a utilização de uma narrativa tradicional em terceira pessoa, por meio de um narrador impessoal e onisciente, intercalada com trechos em primeira pessoa de cada personagem, oferecendo um maior dinamismo e vozes com diferentes pontos de vista, algumas vezes conflitantes, para um mesmo evento. As mulheres, por exemplo, apesar de dominadas por uma sociedade extremamente patriarcal, com costumes antigos como os casamentos arranjados entre famílias e o uso do véu, acabam exercendo o poder de decisão de forma indireta, devido à sua inteligência e criatividade, isso fica evidente em várias partes do romance, evidenciando ainda mais o conflito entre islamismo e secularismo. O trecho abaixo, uma reflexão em primeira pessoa da esposa de Mevlut, Rayiha, ao tentar influenciar na escolha do nome para o segundo filho (após a frustração do primeiro ter sido uma menina, Fatma) e, antes de saber se seria menino ou menina, é bem representativo deste domínio masculino.
RAYIHA. "Da última vez, você procurou nomes de meninos e tivemos uma menina", disse a meu marido, e lhe passei o livro de nomes islâmicos. "Se tentar ler todos os nomes de meninas, talvez dessa vez tenhamos um menino. Você pode verificar se existem nomes de meninas que contenham o nome 'Alá'!" "Os nomes de menina não podem conter o de 'Alá'!", disse Mevlut. Segundo o Alcorão, o máximo que as meninas podem almejar é receber o nome de uma das esposas do profeta Maomé. "Se comermos arroz todos os dias, talvez nos tornemos chineses", brinquei. Mevlut riu, pegou o bebê e cobriu-o de beijos. Só percebeu que seu bigode eriçado estava fazendo Fatma chorar quando eu o adverti. (Pág. 269)
A riqueza das vozes narrativas e o próprio "estranhamento" provocado no leitor ocidental ao se deparar com culturas, lugares e uma língua tão peculiar, fazem do romance uma descoberta a cada página. O fio condutor de toda a história é a paixão de Mevlut por uma das três irmãs — Vediha, Rayiha e Samiha — que ele apenas vislumbra rapidamente em uma festa de casamento. Apaixonado por esta jovem, Samiha, ele escreve cartas de amor por três anos e consegue convencê-la a fugir com ele, mas quando consegue concretizar o seu plano, durante a viagem para Istambul, descobre que a moça não é a mesma que ele conheceu e sim a sua irmã mas velha, Rayiha. Em uma confusa mistura de vergonha e generosidade, ele decide ficar com ela. No decorrer do livro, o leitor fica conhecendo aos poucos como foi arranjada esta situação e o verdadeiro papel de cada personagem.

Complementam o romance uma cronologia de 1954 até 2012 para relembrar a história recente da Turquia, um índice remissivo que se mostra muito útil devido aos difíceis nomes dos personagens, assim como uma árvore genealógica das famílias dos irmãos Hasan Aktas e Mustafa Karataş. Enfim, um livro importante para entender melhor a situação política turca atual e sua influência no Oriente Médio. Mais um trabalho de grande sensibilidade de Orhan Pamuk que consegue mostrar, por meio da mágica da literatura, esta "sensação estranha" e humana que nos faz amar uma cidade e descobrir como podemos ser iguais, vivendo em culturas tão diferentes.

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