Fernando Morais - Corações Sujos

Jornalismo literário

Fernando Morais - Corações Sujos - A História da Shindo Renmei - Editora Companhia das Letras - 352 Páginas - Capa Hélio de Almeida - Lançamento: 17/11/2000 - Prêmio Jabuti 2001 de melhor reportagem.

No dia 1º de janeiro de 1946 o imperador Hiroíto dirigiu-se à sociedade japonesa para um pronunciamento ainda mais doloroso do que o famoso discurso de rendição do Japão às forças aliadas ao final da Segunda Guerra Mundial, no dia 15 de agosto de 1945, quando havia pedido aos seus súditos para "suportar o insuportável" em nome da paz. Desta vez a humilhação imposta pelos aliados obrigava o imperador a fazer a "Declaração da Condição Humana", ou seja, assumir publicamente que não era uma divindade como acreditara o país ao longo de toda a sua história. Tanto a derrota do Exército Imperial quanto a renúncia de Hiroíto à divindade, eram fatos contestados por grande parte da colônia de imigrantes japoneses vivendo no Brasil naquela época. Isto originou a formação da Shindo Renmei, ou "Liga do Caminho dos Súditos", uma organização clandestina de cunho nacionalista e paramilitar.

Para melhor entendimento dos motivos que levaram ao crescimento da Shindo Renmei é preciso conhecer o contexto histórico de isolamento da colônia japonesa no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial que contava na época com 200 mil imigrantes, principalmente no Estado de São Paulo. O governo Getúlio Vargas demorou a abandonar a posição de neutralidade no conflito, mas em 28 de janeiro de 1942 foi declarado o rompimento das relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, Itália e Japão. Esta decisão acarretou um profundo sentimento de xenofobia nacional com a adoção de medidas contra a disseminação de quaisquer documentos e até mesmo reuniões  onde se falasse os idiomas dos países do Eixo em lugares públicos, proibição dos jornais em língua japonesa e até mesmo uso do rádio nas residências. O conjunto de restrições dificultou a comunicação de tal forma que as notícias da rendição do Japão foram entendidas como um golpe de propaganda dos aliados.

A organização Shindo Renmei, apelando para o orgulho patriótico dos integrantes da colônia no Brasil, encontrou terreno fértil para dividir os imigrantes entre os kachigumi ou "vitoristas", apoiados por oitenta por cento da comunidade, acreditando que o Japão era na verdade o vencedor da Segunda Grande Guerra e, do outro lado, os makegumi ou "derrotistas", chamados de "corações sujos" pelos militantes da Shindo Renmei. A situação se complicou de tal forma que os radicais desta organização deram início a uma limpeza ideológica, realizando atentados e assassinatos em nome do que acreditavam ser a verdade histórica, ou seja, a vitória do invencível Exército Imperial japonês que jamais perdera uma guerra em 2600 anos. Entre 1946 e 1947, como resultado das operações terroristas da Shindo Renmei, 23 pessoas foram mortas e 147 ficaram feridas.

A organização também praticava diversos tipos de fraude como "contra-ataque" ao que consideravam a propaganda de guerra dos aliados (mesmo a guerra já tendo acabado). Edições da revista Life eram alteradas em gráficas clandestinas acrescentando caracteres japoneses e manipulando as imagens sobre a cerimônia de rendição a bordo do navio Missouri de forma a passar a impressão de que os norte-americanos é que estavam se rendendo. A perseguição contra os makegumi ou "corações sujos" da comunidade também era implacável por meio de publicações regulares sobre a ideologia dos kachigumi. É claro que existiam também patrícios inescrupulosos que se aproveitavam da ingenuidade dos japoneses para vender passagens e terras falsas no Japão vitorioso.

O grupo que aparece na foto da capa, conhecido como os "sete heróis" da colônia de Tupã no interior de São Paulo, executou uma das primeiras missões da Shindo Renmei ao tentar degolar o cabo Edmundo Vieira Sá da Força Pública paulista (atual Polícia Militar) devido ao mesmo ter desonrado a bandeira nipônica durante uma ação policial (limpado as botas com a bandeira). Os sete japoneses não obtiveram sucesso por não terem conseguido encontrar o cabo fugitivo, foram detidos e surpreenderam as autoridades ao afirmar durante os interrogatórios (com a ajuda de interpretes já que a maioria não falava português) que o Japão é que ganhara a guerra: "Japão ganhou a guerra. No bairro Coim todo mundo sabe disso. Se o Japão tivesse perdido a guerra, todos os japoneses estariam mortos. O Japão nunca perdeu uma guerra, então ganhou essa também."

O movimento foi abafado em um período relativamente curto de treze meses, mas seus efeitos foram tão fortes na sociedade brasileira que, em 1946, a Assembléia Constituinte, motivada pela violência atribuída à Shindo Renmei, chegou a deliberar sobre a proibição definitiva da imigração japonesa no futuro. Luís Carlos Prestes (a favor) e Gilberto Freyre (contrário) se envolveram em um intenso debate reproduzido no livro. A proibição felizmente foi rejeitada por apenas um voto de desempate, dado pelo presidente da assembléia. Fernando Morais elaborou um trabalho precioso de jornalismo literário, premiado com o Jabuti de reportagem em 2001, sobre um assunto esquecido pelos livros de história e também pela colônia japonesa, mas muito importante ao lembrar o perigo dos movimentos fundamentalistas que utilizam a violência e a manipulação da informação em nome de uma suposta verdade.

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