Marcílio Moraes - Entre as estrelas: Aquiles

Literatura brasileira contemporânea
Marcílio Moraes - Entre as estrelas: Aquiles - A saga de um autor de telenovelas - Editora 7 Letras - 140 Páginas - Lançamento: 01/01/2018.

O escritor e dramaturgo Marcílio Moraes foi também professor, tradutor, jornalista, crítico de teatro, publicitário, revisor, dicionarista e assessor técnico da Fundação Nacional de Arte – Funarte. Ele desenvolveu uma longa carreira na televisão brasileira, tendo iniciado a escrever novelas na TV Globo na década de 80, no início em colaboração com autores que marcaram época no gênero, caso de Dias Gomes com "Roque Santeiro" e Lauro Cesar Muniz com "Roda de Fogo", mais tarde trabalhou, na mesma empresa, em roteiros de minisséries de sucesso, tais como: "A Grande Família", "Noivas de Copacabana", “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “Chiquinha Gonzaga”. Desde 2005, Marcílio Moraes é autor contratado da TV Record onde escreveu, entre outras, a novela “Vidas Opostas”, vencedora do Troféu Imprensa de 2008 e os seriados: "A Lei e o Crime" (2009), "Fora de Controle" (2012) e "Plano Alto" (2014).

É natural que o leitor, influenciado pelo extenso currículo de Marcílio Moraes na atividade de roteirista de teledramaturgia e o sugestivo subtítulo, A saga de um autor de telenovelas, tenha dúvidas quanto ao estilo que se apresenta neste livro, mas posso garantir que, tanto em termos de conteúdo quanto de forma narrativa, o texto pode — e deve — ser classificado como romance de literatura brasileira e avaliado, portanto, sem preconceitos, procedimento que adotei durante a minha própria leitura e não me arrependi. Utilizando a sua vocação original de dramaturgo, Marcílio surpreende com um texto forte e criativo que certamente não seria aprovado como base de um roteiro para telenovela na TV Globo ou, muito menos, na TV Record.


A inspiração vem do universo televisivo e do comportamento nada ético de autores, diretores e executivos envolvidos na produção de uma telenovela, sendo o protagonista um experiente e amargurado autor em crise. Logo, outro questionamento Inevitável do leitor poderia ser o quanto de autobiográfico está presente no romance. Bem, este é um ponto mais subjetivo e de difícil comprovação, já que somente Marcílio Moraes poderia identificar as pessoas reais que inspiraram a criação dos personagens — coisa que ele dificilmente fará — mas obviamente a sua vivência na área deve ter sido relevante na construção do texto de ficção e a semelhança com pessoas e celebridades reais não parece ter sido uma mera coincidência.


A trama é ambientada no início dos anos 90, um período anterior ao dos canais de televisão fechados, quando o poder das telenovelas era ainda mais determinante para a sobrevivência financeira das emissoras, o protagonista João Carlos, ou Joca, como é chamado pelos colegas, é um experiente escritor que está iniciando os primeiros capítulos de um roteiro quando é informado de que uma das atrizes escalada para sua próxima novela será transferida para outra produção, que passa por uma crise de audiência. Joca fica transtornado com a notícia e entra em rota de colisão com o diretor e o executivo mais importante da emissora pelo retorno da atriz.


No decorrer do texto, fica claro que o interesse de Joca por Nize, a jovem e bela atriz em disputa, não é unicamente fruto de sua preocupação com o sucesso da produção, ele pretende se aproveitar do fato de ter sido o responsável pela descoberta e ascensão profissional da atriz, cobrando o preço tradicional nesses casos, e ignorando a relação, de aparências, que ainda mantém com a sua esposa, ambos "adestrados na chacina dos sentimentos conjugais". Na verdade, Joca está plenamente inserido na rede de interesses egocêntricos do poderoso canal de TV para o qual trabalha e fará qualquer coisa para manter o seu status.

Marcílio Moraes demonstra facilidade na construção de diálogos rápidos e carregados de tensão psicológica, mas sem dispensar referências a temas da história, literatura e mitologia grega clássica, como na reunião entre Joca e Menão, o todo poderoso executivo da emissora, durante o almoço no "Parnaso" com os "janízaros lambedores de saco". Por sinal, um recurso interessante é o uso de vocabulário inusitado em algumas passagens, por exemplo os substantivos: "jabarandaia", "morubixaba" ou "tutumumbuca" todos sinônimos para mandachuva, outra marca de um escritor profissional que foi também dicionarista, diga-se de passagem.

A construção psicológica do protagonista é muito rica em seus contrastes porque ao mesmo tempo em que este demonstra desprezo pelas pessoas ao seu redor e frustração com a carreira de roteirista, é impotente para mudar o seu próprio comportamento egoísta e covarde, inclusive com outros colegas escritores. Nos seus momentos de crise busca refúgio no álcool, mas começa a perder o controle de suas ações como no trecho abaixo em que, completamente bêbado, é convidado a discursar ao final de um elegante jantar com os amigos da esposa e acaba descarregando todo o seu ódio acumulado pela carreira na televisão.
"— Fui instado a discursar, não pelos meus méritos ou deméritos de ser humano, mas porque sou homem de televisão. Assim sendo é sobre ela que vou falar. Meus amigos, a televisão é uma merda. Tudo que ela atinge vira merda. Eu me tornei um merda. E quando sou paparicado por vocês, que me acham grande coisa, também transformo vocês em merda. Escrevo para televisão porque gosto de dinheiro. Quem já dependeu de uma peça de teatro para viver sabe da indigência de que falo. Hoje estou aqui, no meio dos grã-finos, tomando champanhe e entupindo meus ouvidos de besteiras. Era tudo que eu queria nos tempos em que girava sem sentido na solidão das praças públicas, objeto do escárnio e das gozações dos filhos da puta que assistiam e jogavam os sacos de pipoca amassados em mim. Eu olhava para cima, via o céu brilhando e dizia: um dia vou estar entre as estrelas. E lá cheguei. História bonita, hein? Trama de novela. Quem sabe eu não possa me apresentar diante do eterno e dizer com toda convicção: eu sou aquele que circulava em volta do nada e queria estrelas e hoje as estrelas giram em volta de mim que sou nada, trapaceiro que ludibria enganadores, pilantra que enaltece mariolas, puxa-saco que bajula lambe-cus, soberbo que convence arrogantes de que são humildes, bêbado que prega o comedimento. Termino com o velho Pessoa: ó príncipes, meus irmãos, onde é que há gente na porra deste mundo?" (Pág. 83)
O romance é narrado em terceira pessoa, contudo com inserções de fluxo de consciência. Esta alternância do discurso narrativo ajuda na criação de contrastes e apresenta uma chance única de percebermos as verdadeiras intenções do protagonista que não é confiável, mas desperta a nossa simpatia pelo que representa de humano e verdadeiro. Outra característica da construção do texto é a mistura com partes dos capítulos que estão sendo escritos para a telenovela, possibilitando um interessante efeito de oposição entre ficção e realidade.

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